Ontem fiz uma viagem ao passado enquanto assistia a um qualquer telejornal da televisão. A notícia estava relacionada com a falta de professores na escola Secundaria António Arroio. E a minha viagem começou ali…
Tinha
12 anos, e como era hábito, a hora de jantar era o momento em que falávamos
sobre como tinha corrido o nosso dia e contávamos todas as novidades. Nesse dia
enchi-me de coragem e disse aos meus pais que gostava de mudar de escola. Não
era mudar para a escola 100 metros acima da actual, não era mudar de escola
para uma na freguesia do lado. Não. Não era nada disso. Era mudar para uma
escola em Lisboa (eu vivia na periferia de Lisboa). Mas também não era uma
escola qualquer era a ANTÓNIO ARROIO.
Uma professora tinha-me dito que tinha o perfil certo para me aventurar
naquela escola, que estava talhada para artes e que era ali que tudo acontecia.
Na minha cabeça eu visualizei um espaço tipo “Fame” (a série que fascinava
qualquer pré adolescente da altura) e era esse o espaço que eu estava a
descrever aos meus pais naquele jantar. Recordo-me que o meu pai me disse: “
depois falamos nisso” e eu fiquei ali em suspense. Dias mais tarde A conversa.
Mais uma conversa sobre responsabilidade, sobre os perigos que aquela mudança
iria produzir na minha vida, que teria de acordar às 6,30 da manha todos os
dias, que teria de apanhar 3 transportes diferentes, que apanharia chuva e
frio,… o cenário era o pior dos piores e ainda assim eu mantinha-me fiel ao meu
desejo. Por ultimo o meu pai proferiu o argumento final: vais para a António
Arroio para que um dia não digas que foram os teus pais a impedirem-te de
sonhar mas as notas, essas têm de se manter boas. E começou ali uma grande
aventura.
Vivi
em terror nesse verão. A pensar que ia partir para o desconhecido, onde tudo
era novo e diferente, onde não havia nada nem ninguém que me ajudasse. Fiz tudo
sozinha (com a supervisão distante de uns pais que sempre me ensinaram a ser
responsável). Inscrevi-me, procurei os melhores transportes, percebi a que
horas tinha de acordar para estar às 8 nas aulas… fi-lo cheia de medo de
falhar.
O
primeiro dia foi fatal… fui praxada! Cortaram-me o cabelo, encheram-me de
vinagre (ainda hoje carrego essa memoria
olfactiva) e guaches da Pelikan mas regressei a casa orgulhosa das minhas
pinturas de guerra. Era o primeiro dia dos 4 anos que lá andei. Quatro anos de
vivências que só quem ali andou entende. É complicado para qualquer
"Arroiano" explicar o que tinha aquela escola de diferente das outras
em concreto, mas havia uma estranha cumplicidade criativa entre alunos,
docentes e até o pessoal auxiliar. Mesmo à revelia das normas existia um
direito à diferença tão enraizado e natural que não se dava pela
"diferença" e essa maneira de estar, de viver a escola como um espaço
de criação, será provavelmente o factor que mais marcou a António Arroio e quem
por lá passou naquela altura.
Foram
anos de aprendizagem diária, as tardes a pintar paredes na "Alameda das
Ganzas" (local mítico e rodeado das mais mirabolantes historias), os cafés
prolongados e os jogos de cartas no Louvre, o muro que voltámos a pintar com
desenhos coloridos mesmo depois da camara o ter pintado de branco, as
manifestações que realizamos contra a PGA e contra o facto das instalações onde
estávamos serem de 1963 e não darem garantias de segurança nos anos 80, a
passadeira de peões que pintamos directamente do portão da escola em direcção
ao Louvre, as horas sentados no chão da escola a conversar sobre tudo e sobre
nada,… tudo isto e muito mais fizeram de mim uma pessoa muito melhor.
Esta
escola, onde existiam rusgas de cães polícia semanalmente em busca de droga,
fez-me aceitar a diferença. Fez-me aceitar o diferente e ter orgulho no mesmo.
Sem nunca ter experimentado drogas, sem nunca me ter embebedado, sem nunca ter
fumado, sempre me senti integrada. Sempre pertenci ao todo que era aquela
escola.
Há
coisa de trinta anos, um aluno qualquer armado em artista, subiu a um escadote
e pintou espontaneamente sobre a porta principal da escola um AMO-TE com um
"A" de anarca, e o graffiti ali ficou, resistindo a obras
remodelações e reconfigurações. Acham isto normal? É claro que não. A António
Arroio não é uma escola normal!
 |
Projecto inicial de 1963 |
 |
O spot mais frequentado da escola - a entrada. E o eterno AMO-TE na fachada principal! |
.jpg) |
A famosa/temida/intrigante alameda das ganzas |
 |
O autocolante de uma das campanhas para a associação de estudantes |